sexta-feira, 15 de agosto de 2008

IN MEMORIAM ÉDOUARD HONORÉ GANDON (1886-1962)

A decisão de construir na Internet este memorial está relacionada com o meu projecto de salvaguarda e difusão da obra ímpar de meu tio-avô.

Nasceu Édouard em Lisboa de mãe portuguesa (Maria Sampaio) e de pai francês (Honoré Gandon). Sua mãe mantinha uma casa de alta costura (Casa Gandon) situada num primeiro andar de um prédio da Av. da Liberdade, próximo da Rua das Pretas.

Viveu com sua família num andar da Av. de Berna (num prédio demolido, no local onde hoje está a embaixada de Moçambique). Tinha duas irmãs: Hélène Gandon e Marie-Louise Gandon Banet, com quem partilhou o andar da Av. de Berna durante largo tempo, até à sua morte.

Foi para um colégio interno em Bordéus, onde concluiu o liceu. Mais tarde, frequentou a Académie des Beaux-Arts de Paris. Foi soldado-maqueiro nas trincheiras da 1ª Guerra Mundial. Depois desta guerra, casou-se com Louise, de quem teve uma filha, Huguette.

Em consequência de complicações decorrentes de um aborto, sua esposa morreu, ficando o pintor com a pequena Huguette. Veio então viver para Lisboa, para junto das suas irmãs.
O sentimento de perda de sua companheira deve ter sido muito profundo, pois não voltaria a casar-se, nem teve, que se conhecesse, ligações sentimentais.

Pudemos fotografar mais de duas centenas de obras (nas quais se incluem muitos esboços e telas inacabadas), presentes em casa de familiares, cujos temas mais frequentes são naturezas mortas, motivos florais, retratos e paisagens.
Penso que a parte da sua produção que eventualmente esteja em França ou em Portugal, nas mãos de coleccionadores particulares, terá as mesmas características, tanto no que diz respeito às temáticas, como ao estilo.

A partir da década de 60, a sua doença agravou-se e, praticamente confinado a casa, limitou-se a terminar telas inacabadas. Portanto, consideramos que a grande maioria da sua produção se situa entre 1920 e 1960.

O relacionamento que estabelecia com os seus quadros era muito especial. Digo isto, porque relatos da família mostram que ele não fazia o mínimo esforço para ser conhecido e apreciado, para que suas telas fossem bem cotadas ou para ter encomendas.
A sua irmã, Marie Louise, tinha herdado a gestão da Casa Gandon, tendo como clientela senhoras da alta burguesia e aristocracia. Várias destas clientes tentaram, em vão, que Édouard Gandon fizesse uma exposição pública das suas obras. Elas ficavam extasiadas com a mestria exibida nos quadros pendurados nos salões da Casa Gandon, na Av. da Liberdade. Porém, Édouard nunca autorizou que se organizasse uma tal exposição. Vendeu muito pouco, mais para ter dinheiro «de bolso», com que comprar telas e tintas ou guloseimas para a filha e sobrinhas (as gémeas Jeanne e Georgette Banet, filhas de Marie Louise e do engenheiro Maurice Banet).
A sua obra ficou - por este motivo - praticamente concentrada nas mãos de familiares e de amigos.

Mas outras causas têm-se conjugado para que sua obra não tenha saído do desconhecimento total do público português e internacional:

- Existiu pouco empenhamento em dar a conhecer a sua arte, por parte de alguns herdeiros, detentores de seus quadros. A abundância de quadros nas casas da família levaria, paradoxalmente, a que estes não fossem tidos em tão elevada estima como mereciam. Eram apenas lindos objectos, que «ficavam bem» nas paredes de suas casas. Noutros casos, eram vistos como algo íntimo e ligado à vida familiar e pessoal, tal como outros objectos herdados ou como álbuns de fotos da família. Seja como for, certos membros da família, embora soubessem que esta obra tinha grande valor, não se empenharam em torná-la publicamente conhecida.

Durante vários anos tentei, em vão, convencer os familiares «mais velhos» a promoverem o reconhecimento da obra, da qual possuíam várias telas. Espero ter, agora com a publicação deste memorial, uma maior compreensão da família. Embora não tivesse recebido atenção e fama durante o seu tempo, a obra de Édouard Gandon, pode ainda ser resgatada do esquecimento e estudada condignamente por especialistas de arte do século XX e apreciada pelo público de hoje.

- Em termos gerais, a cultura do século XX padeceu de uma sucessão de vanguardismos, multiplicando experiências, sem o mínimo critério, que permitisse sedimentar o gosto, sem distinguir a mera cabotinice da inovação criativa. Sobretudo, desprezando tudo o que tem sido descrito como «arte burguesa», ou seja, o cliché ideologizante.
Para se compreender e apreciar uma obra, esta tem de estar devidamente contextualizada. Além disso, a sua qualidade intrínseca tem de ser vista através de critérios estilísticos, tais como as correntes às quais o artista está associado ou das quais se encontra próximo e de critérios estéticos, isto é, «o cânon interno» ou «a linguagem» das obras, a qualidade e as técnicas de moldagem da forma e da cor.

Édouard Gandon não foi, com certeza, um artista de vanguarda. Nos anos de estudante em Paris e até ao início dos anos 30, teve oportunidade de contactar com as correntes dessa altura. Certamente, não podia ignorar as obras de Cézanne, Modigliani, Vlaminck, Seurat, Picasso...

Não se pode saber qual teria sido a evolução da sua arte, caso tivesse decidido permanecer em França. Mas, parece-me legítimo supor que se teria mantido igual a si mesma, num realismo «não fotográfico», integrando algo dos impressionistas.

Deve dizer-se que o estudo crítico da sua obra é dificultado pela escassez de dados cronológicos relativos às suas telas. Infelizmente, na produção conhecida e fotografada, poucas são as pinturas datadas. Estas são, quase apenas, de épocas posteriores ao seu regresso definitivo a Portugal, dos anos 30 em diante.

Retratos

Os retratos que se podem atribuir à década de 20, são obviamente os da sua esposa, assim como os da filha, quando muito pequena. Pelo estilo muito pessoal e a qualidade com que executou estes retratos, pode-se afirmar que, não somente tinha completado a sua formação, como já atingira a mestria na sua arte durante aquela década.

Após o seu regresso definitivo a Portugal, a família que o rodeava pousou bastantes vezes para ele.

Os sucessivos retratos de sua filha, adolescente, jovem mulher, esposa e mãe, são de uma grande sensibilidade e emoção contida.

São de qualidade igual ou superior aos atrás citados, os da sua irmã, Marie Louise. Édouard e sua irmã partilhavam o quotidiano. Édouard vivia debaixo do mesmo tecto que Marie Louise.

Édouard também executou alguns auto-retratos notáveis. Impressionam o rigor e sobriedade destas obras. Sua alma transpõe a tela e entra em comunicação mágica com o observador.

O protocolo para a feitura de um quadro dependia essencialmente de qual objecto se tratava: se fosse uma pessoa, na sessão de pose inicial, fazia esboços a carvão e nas outras sessões executava a pintura sobre tela. Era frequente, alguém posar de olhos baixados, lendo as páginas dum livro (há muitos quadros de membros da família lendo ou cosendo).


Paisagens


Se o tema era uma paisagem, o procedimento era diferente: são frequentes os quadrinhos de madeira ou contraplacado, com cerca de 15 - 20 cm, onde esboçava a paisagem, in loco: estes eram seu «bloco de apontamentos». O pintor usava também, no campo, um deguerrótipo com tripé, uma enorme caixa de madeira com aros de metal amarelo. A partir destes elementos, executava as telas no estúdio.
A finalidade dos quadrinhos acima referidos torna-os estilisticamente semelhantes aos quadros dos «impressionistas».


O facto é que a vibração que eles transmitem se repercute nas telas de maiores dimensões, onde a sinfonia das cores naturais e o subtil jogo da luz está realmente conseguida a um nível que considero inultrapassável.


Naturezas Mortas e Vasos Com Flores


Os temas variam, mas incluem sempre um elemento vegetal (flores, frutos, legumes…) e objectos, de vidro (copos, jarros), faiança ou porcelana (alguns exemplares ainda existentes nas casas de familiares). Por vezes, livros, cinzeiros, utensílios de cozinha. Não tenho conhecimento de naturezas mortas com elementos animais. Aliás, também são raras as paisagens com a presença de animais, em toda a sua produção.

As telas de dimensões médias ou grandes são muito harmoniosas. A disposição dos objectos é cuidadosamente posta em cena. Tinham uma função prática semelhante à das naturezas mortas das diversas escolas, dos séculos passados: eram destinadas às paredes de salões, salas de estar, salas de jantar.

O pintor extrai o máximo efeito das cores, sombras e luzes, reflexos e texturas dos tecidos ou superfícies. Cada quadro é um registo de observação e uma reflexão sobre a cor, a luz e a textura. Os numerosos «quadrinhos» com naturezas mortas diversas ou vasos com flores, podem, eventualmente, ajudar a identificar de telas não assinadas de dimensões maiores. Com efeito, vários são os casos em que os quadrinhos são estudos para telas com maiores dimensões.

Tal como acontece com as paisagens, é nestas telas que se podem detectar semelhanças com os impressionistas (Paul Cezanne, Camille Pizarro, Claude Monet, Édouard Manet, Renoir, etc.) afastando-o dum realismo «fotográfico».


Quando o autor destas linhas tinha oito anos, o seu adorado tio-avô faleceu.

A sua arte permanece, porém, espero, para usufruto e prazer dos leitores deste memorial / museu virtual.


Manuel Baptista*

*Sobrinho-neto de Édouard Gandon,
docente do ensino secundário.


PS I:
Um pedido: todas as pessoas que possuam elementos biográficos, obras (telas, desenhos, etc.) ou outros documentos, contactem-me através deste site ou e-mail; ficarei imensamente grato!


PS II:
Queria agradecer ao Yuri Paiva, que fotografou e fez a edição digital das obras aqui expostas, assim como à minha família em geral e em particular, à minha esposa Yura, por me ter ajudado em tudo, à minha mãe Georgette por tornar possível o projecto e pela sua participação nele, minha prima e filha do pintor Huguette, meus primos Jorge, Mité e Helena, por me terem permitido que fotografasse as obras em suas casas, as minhas filhas Joana e Verónica pelo auxílio que prestaram nas sessões de fotografia e amigos que, de uma forma ou de outra, me têm apoiado.

1 comentário:

Susana Serrano Pahlk disse...

Olá Manel!
Gostei de ler sobre o teu tio, mas gostava de saber quando vais por aqui fotografias das pinturas.
Um beijo desde Hamburgo,
Susana